30 junho 2007

Uma Qualquer Pessoa

Precisava de dar qualquer coisa a uma qualquer pessoa.
Uma qualquer pessoa que a recebesse
num jeito de tão sonâmbulo gosto
como se um grão de luz lhe percorresse
com um dedo tímido o oval do rosto.

Uma qualquer pessoa de quem me aproximasse
e em silêncio dissesse: é para si.
E uma qualquer pessoa, como um luar, nascesse,
e sem sorrir, sorrisse,
e sem tremer, tremesse,
tudo num jeito de tão sonâmbulo gosto
como se um grão de luz lhe percorresse
com um dedo tímido o oval do rosto.

Na minha mão estendida dar-lhe-ia
o gesto de a estender,e uma qualquer pessoa entenderia
sem precisar de entender.

Se eu fosse o cego
que acena com a mão à beira do passeio,
esperaria em sossego,
sem receio.
Se eu fosse a pobre criatura que estende a mão na rua à caridade,
aguardaria, sem amargura,
que por ali passasse a bondade.
Se eu fosse o operário que não ganha o bastante para viver,
lutava pelo aumento do salário
e havia de vencer.

Mas eu não sou o cego,
nem o pobre,
nem o operário a quem não chega a féria.
Eu sou doutra miséria.
A minha fome não é de pão, nem de água a minha sede.
A minha mão estendida e tímida, não pede.
Dá.
Esta é a maior miséria que no mundo há.
E eu que precisava tanto, tanto, de dar qualquer coisa a uma
qualquer pessoa!
E se ela agora viesse?
Se ela aparecesse aqui, agora, de repente,
se brotasse do chão, do tecto, das paredes,
se aparecesse aqui mesmo, olhando-me de frente,
toda lantejoulada de esperanças
como fazem as fadas nos contos das crianças?

Ai, se ela agora viesse!
Se ela agora viesse, bebê-la ia de um trago,
sorvê-la-ia num hausto,
sequiosamente,
tumultuosamente,
numa secura aflita,
numa avidez sedenta,
sofregamente,
como o ar se precipita
quando o espaço vazio se lhe apresenta.

António Gedeão (1906 -1997)

28 junho 2007

Abrigo


"Tengo las manos de ayer, me faltan las de mañana"
Chillida

27 junho 2007

Naked Man, Back View -1991-1992, Lucien Freud (1922)

«My mother said that my first word was "alleine" wich means alone. Leave me alone.»

Lucien Freud

23 junho 2007

Tus Pies

Cuando no puedo mirar tu cara
miro tus pies.

Tus pies de hueso arqueado,
tus pequeños pies duros.

Yo sé que te sostienen,
y que tu dulce peso
sobre ellos se levanta.

Tu cintura y tus pechos,
la duplicada púrpura de tus pezones,
la caja de tus ojos que recién han volado,
tu ancha boca de fruta,
tu cabellera roja,
pequeña torre mía.

Pero no amo tus pies
sino porque anduvieron
sobre la tierra y sobre
el viento y sobre el agua,
hasta que me encontraron.

Pablo Neruda (1904 - 1973)

21 junho 2007

Dans la Solitude des Champs de Coton

Encre et Fusion - Luis Caballero

“Si un chien rencontre un chat – par hasard, ou tout simplement par probabilité, parce qu'il y a tant de chiens et de chats sur un même territoire qu'ils ne peuvent pas, à la fin, ne pas se croiser ; si deux hommes, deux espèces contraires, sans histoire commune, sans langage familier, se trouvent par fatalité face à face – non pas dans la foule ni en pleine lumière, car la foule et la lumière dissimulent les visages et les natures, mais sur un terrain neutre et désert, plat, silencieux, où l'on se voit de loin, où l'on s'entend marcher, un lieu qui interdit l'indifférence, ou le détour, ou la fuite ; lorsqu'ils s'arrêtent l'un en face de l'autre, il n'existe rien d'autre entre eux que de l'hostilité – qui n'est pas un sentiment, mais un acte, un acte d'ennemis, un acte de guerre sans motif.”
Bernard-Marie Koltès

20 junho 2007

La Prière, 1930 - Man Ray (1890 -1976)


"If the desire is strong enough, it will find a way. In other words, inspiration, not information, is the force behind all creative acts."
Man Ray

19 junho 2007

Cavalo Alucinado

Pára-me de repente o pensamento
Como que de repente refreado
Na doida correria em que levado
Ia em busca da paz do esquecimento.

Pára surpreso, escrutador, atento,
Como pára um cavalo alucinado
Ante um abismo súbito rasgado.
Pára e fica, e demora-se um momento.

Pára e fica, na doida correria.
Pára à beira do abismo, se demora.
E mergulha na noite escura e fria.

Um olhar de aço, que essa noite explora.
Mas a espora da dor seu flanco estria,
E ele galga e prossegue sob a espora...

Ângelo de Lima (1872 - 1921)

15 junho 2007

Relativity, 1953 - M.C. Escher (1898 -1972)

"Sometimes it seems as though we are all obsessed with a longing for the impossible. The reality around us, the three-dimensional world surrounding us, is to ordinary, too common. We earn for the unnatural or the supernatural, the impossible, the miraculous..."
M.C. Escher (1963)

13 junho 2007

La Poupée, 1935 - Hans Bellmer (1902-1975)

"L'expression élémentaire, celle qui ne vise pas au départ la communicabilité, est un réflexe. A quel besoin, à quel instinct du corps correspond-elle ?"
Hans Bellmer

08 junho 2007

Álcool

Guilhotinas, pelouros e castelos
Resvalam longemente em procissão;
Volteiam-me crepúsculos amarelos,
Mordidos, doentios de roxidão.

Batem asas de auréola aos meus ouvidos,
Grifam-me sons de cor e de perfumes,
Ferem-me os olhos turbilhões de gumes,
Descem-me a alma, sangram-me os sentidos.

Respiro-me no ar que ao longe vem,
Da luz que me ilumina participo;
Quero reunir-me, e todo me dissipo ---
Luto, estrebucho... Em vão! Silvo pra além...

Corro em volta de mim sem me encontrar...
Tudo oscila e se abate como espuma...
Um disco de oiro surge a voltear...
Fecho os meus olhos com pavor da bruma...

Que droga foi a que me inoculei?
Ópio de inferno em vez de paraíso?...
Que sortilégio a mim próprio lancei?
Como é que em dor genial eu me eternizo?

Nem ópio nem morfina. O que me ardeu,
Foi álcool mais raro e penetrante:
É só de mim que ando delirante...
Manhã tão forte que me anoiteceu.

Mário de Sá-Carneiro (1890 - 1916)