13 outubro 2010

Mistérios de Lisboa

"...Gosta de mim, senhor Barão?
Esta pergunta de improviso, espécie de disparate com que a duquesa fechou o período. atarantou o fidalgo, a ponto de lhe roubar provisoriamente, a correcção da frase portuguesa, e mais ainda o dom de articular as poucas palavras com que se colhera da emigração(...)
- Não me responde?! Tornou ela, decifrando as revoluções que se alternavam na fisionomia grotesca do barão. - O seu silêncio, cavalheiro, não é delicado. Franqueza: gosta de mim?
- Se gosto de Vossa Excelência!...devora-me o ciúme. como não há-de ser palpitante o meu amor.
- Não me capacito...Desconfio sempre das paixões que fazem estilo. Acho que a pequenez do amor está na razão inversa da grandeza das palavras. Simplifique as suas respostas senhor Barão. Gosta de mim?
- Imensamente.
- Aí esta uma palavra muito grande!...Assim não quero. Tenho cisma com os advérbios...Não fuja do verbo da pergunta. Terceira vez: gosta de mim?
- Como quer que lhe responda?...Não há linguagem humana que responda convenientemente a tal pergunta.
- Pois não há? Ora, Barão, pergunte-me se gosto de Vossa Excelência.
- Gosta de mim?
- Gosto. Aqui tem!...há lá nada mais natural? Já sabe como eu quero o estilo em matérias de amor. Outra pergunta: que quer de mim?
- Adorá-la, amá-la eternamente; beijar humildemente os seus vestígios, dar a última gota de sangue pelos seus suspiros, contempla-la estaticamente...
- Três advérbios que somam dezasseis sílabas. Não me ame assim. senhor Barão. Não vê que tudo caminha para o espiritualismo? Subtilize as suas frases, espiritualize-as, basta de matéria indispensável!...Que quer de mim? Não me responde!...Não me quer nada!...Ora vejam que amor tão frio!...Nem tanto espiritualismo, cavalheiro...Peca pelo extremo!...Se me dissesse francamente que me queria fazer sentir o ardor do seu sangue, as palpitações das suas artérias. o aroma dos seus suspiro, as lúcidas cambiantes dos seus belos olhos...eu diria que o estilo é uma bonita maneira de encobrir certos pensamentos, que não tem estilo nenhum, pelo menos autorizado nos bons clássicos franceses e portugueses. Ora agora...amar-me eternamente, beijar os meus vestígios humildemente, contemplar-me estaticamente, tudo isto , além de ser impossível no estado actual do coração humano, é uma promessa assustadora, e um futuro insuportável que me anuncia. Amar eternamente!...Deus nos livre disso, não há amor que resista a vinte e quatro horas de filosofia! Eu de mim não aceito o programa; sem me promete amar-me três dias...
- É impossível!...Abandone-me; mas eu hei-de amá-la enquanto sentir no coração uma gota de sangue!
- É sanguinário, Barão! Já me falou em sangue duas vezes!...Adopte uma linguagem mais pacífica. Não gosto de Catões no amor. O sangue será muito proveitoso nas funções da vida animal; mas no nosso caso, dispensa-se. Acho-o até prosaico...
O barão abria a boca, e franzia a testa. O que ele exprimia com semelhante careta, não saberemos nós dizê-lo, nem a duquesa o saberia."
Mistérios de Lisboa - Camilo Castelo Branco (1825-1890)