17 julho 2007

O Astrónomo

À sombra de um templo o meu melhor amigo e eu vimos um cego sentado e solitário.
O meu amigo disse: “Olha que este é o homem mais sábio da nossa terra”. Então aproximei-me do cego, saudei-o e começamos a falar. Pouco depois disse-lhe: - Desculpa a pergunta, mas há quanto tempo estás cego?
Ele respondeu: - Desde que nasci.
- E qual caminho da sabedoria escolheste?
- Sou astrónomo.
Em seguida levou a mão ao peito e acrescentou: - Observo todos estes sóis, estas luas e estrelas.

Khalil Gibran (1883-1931) O Louco, 1918

15 julho 2007

Memoria in aeterna

Family Reunion, 2005 - Laurie Lipton

© 2005 Laurie Lipton


13 julho 2007

Por este caminho chegamos...

The Kiss, 1895 - Edvard Munch (1863-1944)

“O mistério do amor, que é o da dor, possui uma força misteriosa, que é o tempo. Ligamos o ontem ao amanhã com cadeias de angústia, e, a rigor, o dia de hoje mais não é do que o esforço do passado para se tornar futuro. O momento de agora é um ponto que, mal precisado, logo se desvanece e, no entanto, é nesse ponto que está toda a eternidade, substância do tempo.

Tudo o que é não pode ter sido de modo diferente do que foi, e tudo que é só pode ser como é; o possível é sempre relegado para o futuro, único reino da liberdade, onde a imaginação, potência criadora e libertadora, carne da fé, se move à sua vontade.”

Miguel de Unamuno (1864-1936) Del sentimiento trágico de la vida, 1913

03 julho 2007

Os Estatutos do Homem (Ato Institucional Permanente)



Artigo I

Fica decretado que agora vale a verdade. Agora vale a vida,e de mãos dadas,marcharemos todos pela vida verdadeira.

Artigo II

Fica decretado que todos os dias da semana, inclusive as terças-feiras mais cinzentas,têm direito a converter-se em manhãs de domingo.

Artigo III

Fica decretado que, a partir deste instante,haverá girassóis em todas as janelas,que os girassóis terão direito a abrir-se dentro da sombra;e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro,abertas para o verde onde cresce a esperança.

Artigo IV
Fica decretado que o homem não precisará nunca mais duvidar do homem.Que o homem confiará no homem como a palmeira confia no vento,como o vento confia no ar,como o ar confia no campo azul do céu.

Parágrafo único:O homem, confiará no homem
como um menino confia em outro menino.

Artigo V

Fica decretado que os homens estão livres do jugo da mentira.Nunca mais será preciso usar a couraça do silêncio nem a armadura de palavras.O homem se sentará à mesa com seu olhar limpo porque a verdade passará a ser servida antes da sobremesa.

Artigo VI

Fica estabelecida, durante dez séculos,a prática sonhada pelo profeta Isaías,e o lobo e o cordeiro pastarão juntos e a comida de ambos terá o mesmo gosto de aurora.

Artigo VII

Por decreto irrevogável fica estabelecido o reinado permanente da justiça e da claridade,e a alegria será uma bandeira generosa para sempre desfraldada na alma do povo.

Artigo VIII

Fica decretado que a maior dor
sempre foi e será sempre não poder dar-se amor a quem se ama e saber que é a água que dá à planta o milagre da flor.

Artigo IX

Fica permitido que o pão de cada dia tenha no homem o sinal de seu suor. Mas que sobretudo tenha sempre o quente sabor da ternura.

Artigo X

Fica permitido a qualquer pessoa,qualquer hora da vida,uso do traje branco.

Artigo XI

Fica decretado, por definição,que o homem é um animal que ama e que por isso é belo,muito mais belo que a estrela da manhã.

Artigo XII

Decreta-se que nada será obrigado nem proibido,tudo será permitido,inclusive brincar com os rinocerontes e caminhar pelas tardes com uma imensa begônia na lapela.

Parágrafo único:Só uma coisa fica proibida:amar sem amor.

Artigo XIII

Fica decretado que o dinheiro não poderá nunca mais comprar o sol das manhãs vindouras. Expulso do grande baú do medo,o dinheiro se transformará em uma espada fraternal para defender o direito de cantar e a festa do dia que chegou.

Artigo Final

Fica proibido o uso da palavra liberdade,a qual será suprimida dos dicionários e do pântano enganoso das bocas.A partir deste instante a liberdade será algo vivo e transparente como um fogo ou um rio,e a sua morada será sempre o coração do homem.


Thiago de Mello (1926)

01 julho 2007

Quem, no seio...

"Les hommaginaires - Antonin Artaud" - B.M.C

"Quem sonha sem deplorar os seus sonhos, sem trazer uma sensação de atroz nostalgia desses mergulhos em fecunda inconsciência, é imundo. O sonho é verdadeiro. Todos os sonhos são verdadeiros. Tenho a sensação de asperezas, paisagens como que esculpidas, pedaços de terras ondulantes cobertos por uma espécie de areia fresca cujo sentido quer dizer:«pesar, decepção, abandono,ruptura, quando é que voltamos a ver-nos?» Nada faz lembrar tanto o amor como o apelo de certas paisagens vistas em sonho, como o que rodeia certas colinas e é uma espécie de argila material cuja forma diríamos moldada pelo pensamento.

Quando é que voltamos a ver-nos?Quando é que o sabor terroso dos teus lábios voltará a roçar a ansiedade do meu espírito? A terra é como um turbilhão de lábios mortais. A vida escava-nos à frente o abismo de todas as carícias que faltaram. Que fazer ao nosso lado do anjo que não soube aparecer? As nossas sensações serão todas intelectuais de vez, e os nossos sonhos não chegaram a incediar-se numa alma cuja emoção nos vai ajudar a morrer? Que morte será esta onde nunca estamos sós, onde o amor não sabe mostrar-nos o caminho?"


Antonin Artaud (1896 -1948) L´art et la mort, Paris, 1929