24 dezembro 2007

Porque estás sempre comigo...

Não sei como dizer-te que minha voz te procura
e a atenção começa a florir, quando sucede a noite
esplêndida e vasta.
Não sei o que dizer, quando longamente teus pulsos
se enchem de um brilho precioso
e estremeces como um pensamento chegado. Quando,
iniciado o campo, o centeio imaturo ondula tocado
pelo pressentir de um tempo distante,
e na terra crescida os homens entoam a vindima
- eu não sei como dizer-te que cem ideias,
dentro de mim te procuram.

Quando as folhas da melancolia arrefecem com astros
ao lado do espaço
e o coração é uma semente inventada
em seu escuro fundo e em seu turbilhão de um dia,
tu arrebatas os caminhos da minha solidão
como se toda a casa ardesse pousada na noite.
- E então não sei o que dizer
junto à taça de pedra do teu tão jovem silêncio.
Quando as crianças acordam nas luas espantadas
que às vezes se despenham no meio do tempo
- não sei como dizer-te que a pureza,
dentro de mim, te procura.

Durante a primavera inteira aprendo
os trevos, a água sobrenatural, o leve e abstracto
correr do espaço – e penso que vou dizer algo cheio de razão,
mas quando a sombra cai da curva sôfrega
dos meus lábios, sinto que me faltam
um girassol, uma pedra, uma ave – qualquer
coisa extraordinária.
Porque não sei como dizer-te sem milagres
que dentro de mim é o sol, o fruto,
a criança, a água, o deus, o leite, a mãe,
o amor

que te procuram.



Herberto Hélder


(para a Mulher que me ensinou a procurar...)

19 dezembro 2007

03 dezembro 2007

E assim, no tumulto, na chuva, no crepúsculo...

Third Future - Max Klinger (1857-1920)


"Adeus! Agora vais viver, ou morrer! Tens poucas probabilidades. Este baile macabro a que foste arrastado durará ainda alguns anos criminosos e não queremos apostar muita coisa na tua possibilidade de escapar. (...) Certas aventuras da carne e do espírito, que educaram a tua simplicidade permitiram-te vencer no domínio do espírito aquilo a que não escaparás certamente no domínio da carne. Momentos houve em que nos sonhos que tu «governavas», viste brotar da morte e da luxúria do corpo um sonho de amor. Será que dessa festa da morte, dessa perniciosa febre que incendeia à nossa volta o Cêu desta noite chuvosa, também o amor surgirá um dia?"

Thomas Mann (1875-1955) Der Zauberberg, 1924


24 novembro 2007

Génesis

De mim não falo mais: não quero nada.
De Deus não falo: não tem outro abrigo.
Não falarei também do mundo antigo,
pois nasce e morre em cada madrugada.

Nem de existir,que é a vida atraiçoada,
para sentir o tempo andar comigo;
nem de viver,que é liberdade errada,
e foge todo o Amor quando o persigo.

Por mais justiça ...-Ai quantos que eram novos
em vâo a esperaram porque nunca a viram!
E a eternidade...Ó transfusâo dos povos!

Não há verdade: O mundo não a esconde.
Tudo se vê: só se não sabe aonde.
Mortais ou imortais,todos mentiram.


Jorge de Sena (1919-1978)

17 novembro 2007

Ahmad Jamal


"I'm just beginning. Every day is a new beginning. I'm just beginning to write. I'm just beginning to do a lot of things. "

08 novembro 2007

Pharoah Sanders



The Creator Has a Master Plan


There was a time, when peace was on the earth,
and joy and hapiness did reign. Each man
knew his worth. In my heart how I yearn for
that spirit´s return and I cry, as time flies,
Oooomm,Oooomm.

There is a place where love forever shines,and
rainbows are the shadows of a presence so
divine, and the glow of his love lights
the heavens above, and it´s free, come with me
can´t you see.

The creator has a working plan - peace and happiness for every man.

The creator has a master plan - peace and happiness for every man.

The creator makes but one demand, happiness thru all the land.


© 1968 Pharoah Sanders Music Co/Amosis Leontopolis (Ascap)
1969 Karma Pharoah Sanders - Impulse Records

03 novembro 2007

Spider-Man: Blue




“Queria lembrar-me de alguém tão importante para mim que queria passar o resto da minha vida com ela…”

26 outubro 2007

"- Ça, c’est la vie?"

"O Escafandro e a Borboleta” é um livro escrito somente com um olho.

Vitima, em Dezembro de 1995, de um acidente vascular cerebral, Jean-Dominique Bauby fica completamente paralisado à excepção do seu olho esquerdo.

Preso dentro de si, é através desse olho que consegue comunicar com o mundo.

Com 200.000 piscares de pálpebra e, através de um alfabeto próprio baseado na frequência do uso das letras, ele “dita” todas as manhãs as frases que durante a noite memoriza.

O livro foi editado em 5 de Março de 1997.

Quatro dias mais tarde, Jean-Dominique Bauby faleceu.


Agora, para ver nos cinemas...
Mas não com os olhos…

16 outubro 2007

A flor...

"Pede-se a uma criança: Desenhe uma flor! Dá-se-lhe papel e lápis.

A criança vai sentar-se no outro canto da sala onde não há mais ninguém.

Passado algum tempo o papel está cheio de linhas. Umas numa direcção, outras noutras; umas mais carregadas, outras mais leves; umas mais fáceis, outras mais custosas. A criança quis tanta força em certas linhas que o papel quase não resistiu.

Outras eram tão delicadas que apenas o peso do lápis já era de mais.
Depois a criança vem mostrar essas linhas às pessoas: uma flor!
As pessoas não acham parecidas estas linhas com as de uma flor!

Contudo, a palavra flor andou por dentro da criança, da cabeça para o coração e do coração para a cabeça, à procura das linhas com que se faz uma flor, e a criança pôs no papel algumas dessas linhas, ou todas. Talvez as tivesse posto fora dos seus lugares, mas são aquelas as linhas com que Deus faz uma flor!"


José de Almada Negreiros (1893-1970)– A invenção do dia claro,1921

12 outubro 2007

Pensar...

"Minha imaginação doente. Meu pensar de loucura. Entender. Porquê a obsessão de entender o que não tem entendimento possível? Porquê a obsessão de ter de haver uma resposta, apenas porque houve uma pergunta? Todo o entender é no impossível que tem o seu limite. Mas o impossível é a medida do homem e da sua vocação. Aí sou. Aí estou"
"Aprender é reconhecer. E se só se aprende o que já se sabe, tudo o mais o que se aprende apenas se decora para depois esquecer. Platão não o soube com a sua «reminiscência». Mas sobretudo errou ao inventar um lugar donde se aprendeu. Porque esse lugar está está em nós."
"A luz, o mar, o vento. E as flores, os animais, a vida inteira. Não te apetece gritar? Explicar tudo isso num grito? Num excesso do excesso?"
"E eu disse-lhe: o melhor da vida é o seu impossível. E ela disse-me: isso não tem sentido nenhum. E eu dei-lhe razão, mas não sabia porquê. Ou seja, pela melhor razão que podia ter."

"Sorri um pouco, sorri. na perene juventude do teu imaginar. Flor aérea que para sempre te ficou. Lembra devagar o teu sorriso de outrora no teu deslumbramento. E sê feliz."

Virgílio Ferreira (1916-1996)

imagens: Jan Saudek; Karl Perrson; Jan Saudek; Desconhecido

28 setembro 2007

Palavra...



A vida inteira para dizer uma palavra!
Felizes os que chegam a dizer uma palavra!


Saul Dias (1902-1983)

24 setembro 2007

Respiro...

Jan Saudek,1965


Respiro o teu corpo:
sabe a lua-de-água
ao amanhecer,
sabe a cal molhada,
sabe a luz mordida,
sabe a brisa nua,
ao sangue dos rios,
sabe a rosa louca,
ao cair da noite
sabe a pedra amarga,
sabe à minha boca.

Eugénio de Andrade (1923 - 2005)

04 setembro 2007

Um Sonho...

Num deserto lugar do Irão há uma não muito alta torre de pedra, sem portas nem janelas. No único compartimento (cujo o chão é de terra e tem a forma de um círculo) há uma mesa de madeira e um banco. Nessa cela circular, um homem parecido comigo escreve em caracteres que não compreendo um longo poema sobre um homem que noutra cela circular escreve um poema sobre um homem que noutra cela circular...O processo não tem fim e ninguém poderá ler o que os prisioneiros escrevem.

Jorge Luis Borges (1899-1986)- A Cifra,1981

31 agosto 2007

Uma Mulher Perigosa...


Marilyn reading Ulysses, 1952
Eve Arnold (1913-)

29 agosto 2007

Filmes...

Em resposta ao desafio lançado pela Maria Vienne, aqui ficam (apenas) 10 filmes que, de uma forma ou outra, projectaram em mim algo...


Arizona junior - Joel e Ethan Coen

Apocalipse Now - Francis Ford Coppola

Manhattan - Woody Allen

Taxi Driver - Martin Scorcese

Asas do Desejo - Wim Wenders

2001 - Stanley Kubrick

O Homem Elefante - David Linch

All that Jazz - Bob Fosse

Ran - Akira Kurosawa

Naked Lunch - David Cronenberg

Outro Testamento

Quando eu morrer deitem-me nu à cova
Como uma libra ou uma raiz,
Dêem a minha roupa a uma mulher nova
Para o amante que a não quis.

Façam coisas bonitas por minha alma:
Espalhem moedas, rosas, figos.
Dando-me terra dura e calma,
Cortem as unhas aos meus amigos.

Quando eu morrer mandem embora os lírios:
Vou nu, não quero que me vejam
Assim puro e conciso entre círios vergados.
As rosas sim; estão acostumadas
A bem cair no que desejam:
Sejam as rosas toleradas.
Mas não me levem os cravos ásperos e quentes
Que minha Mulher me trouxe:
Ficam para o seu cabelo de viúva,
Ali, em vez da minha mão;
Ali, naquela cara doce...
Ficam para irritar a turba
E eu existir, para analfabetos, nessa correcta irritação.

Quando eu morrer e for chegando ao cemitério,
Acima da rampa,
Mandem um coveiro sério
Verificar, campa por campa
(Mas é batendo devagarinho
Só três pancadas em cada tampa,
E um só coveiro seguro chega),
Se os mortos têm licor de ausência
(Como nas pipas de uma adega
Se bate o tampo, a ver o vinho):
Se os mortos têm licor de ausência
Para bebermos de cova a cova,
Naturalmente, como quem prova
Da lavra da própria paciência.

Quando eu morrer. . .
Eu morro lá!
Faço-me morto aqui, nu nas minhas palavras,
Pois quando me comovo até o osso é sonoro.

Minha casa de sons com o morador na lua,
Esqueleto que deixo em linhas trabalhado:
Minha morte civil será uma cena de rua;
Palavras, terras onde moro,
Nunca vos deixarei.

Mas quando eu morrer, só por geometria,
Largando a vertical, ferida do ar,
Façam, à portuguesa, uma alegria para todos;
Distraiam as mulheres, que poderiam chorar;
Dêem vinho, beijos, flores, figos a rodos,
E levem-me - só horizonte - para o mar.

Vitorino Nemésio (1901-1980)

28 agosto 2007

Um só instante...



"Durante um segundo ou dois, o mundo pareceu-me uma chama de glória. E uma vez extinta essa chama, ficou-me qualquer coisa que nunca mais esqueci que me faz pensar constantemente na beleza que encerra cada um dos mais ínfimos fragmentos de matéria à nossa volta"

Aldous Huxley (1894-1963)

17 julho 2007

O Astrónomo

À sombra de um templo o meu melhor amigo e eu vimos um cego sentado e solitário.
O meu amigo disse: “Olha que este é o homem mais sábio da nossa terra”. Então aproximei-me do cego, saudei-o e começamos a falar. Pouco depois disse-lhe: - Desculpa a pergunta, mas há quanto tempo estás cego?
Ele respondeu: - Desde que nasci.
- E qual caminho da sabedoria escolheste?
- Sou astrónomo.
Em seguida levou a mão ao peito e acrescentou: - Observo todos estes sóis, estas luas e estrelas.

Khalil Gibran (1883-1931) O Louco, 1918

15 julho 2007

Memoria in aeterna

Family Reunion, 2005 - Laurie Lipton

© 2005 Laurie Lipton


13 julho 2007

Por este caminho chegamos...

The Kiss, 1895 - Edvard Munch (1863-1944)

“O mistério do amor, que é o da dor, possui uma força misteriosa, que é o tempo. Ligamos o ontem ao amanhã com cadeias de angústia, e, a rigor, o dia de hoje mais não é do que o esforço do passado para se tornar futuro. O momento de agora é um ponto que, mal precisado, logo se desvanece e, no entanto, é nesse ponto que está toda a eternidade, substância do tempo.

Tudo o que é não pode ter sido de modo diferente do que foi, e tudo que é só pode ser como é; o possível é sempre relegado para o futuro, único reino da liberdade, onde a imaginação, potência criadora e libertadora, carne da fé, se move à sua vontade.”

Miguel de Unamuno (1864-1936) Del sentimiento trágico de la vida, 1913

03 julho 2007

Os Estatutos do Homem (Ato Institucional Permanente)



Artigo I

Fica decretado que agora vale a verdade. Agora vale a vida,e de mãos dadas,marcharemos todos pela vida verdadeira.

Artigo II

Fica decretado que todos os dias da semana, inclusive as terças-feiras mais cinzentas,têm direito a converter-se em manhãs de domingo.

Artigo III

Fica decretado que, a partir deste instante,haverá girassóis em todas as janelas,que os girassóis terão direito a abrir-se dentro da sombra;e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro,abertas para o verde onde cresce a esperança.

Artigo IV
Fica decretado que o homem não precisará nunca mais duvidar do homem.Que o homem confiará no homem como a palmeira confia no vento,como o vento confia no ar,como o ar confia no campo azul do céu.

Parágrafo único:O homem, confiará no homem
como um menino confia em outro menino.

Artigo V

Fica decretado que os homens estão livres do jugo da mentira.Nunca mais será preciso usar a couraça do silêncio nem a armadura de palavras.O homem se sentará à mesa com seu olhar limpo porque a verdade passará a ser servida antes da sobremesa.

Artigo VI

Fica estabelecida, durante dez séculos,a prática sonhada pelo profeta Isaías,e o lobo e o cordeiro pastarão juntos e a comida de ambos terá o mesmo gosto de aurora.

Artigo VII

Por decreto irrevogável fica estabelecido o reinado permanente da justiça e da claridade,e a alegria será uma bandeira generosa para sempre desfraldada na alma do povo.

Artigo VIII

Fica decretado que a maior dor
sempre foi e será sempre não poder dar-se amor a quem se ama e saber que é a água que dá à planta o milagre da flor.

Artigo IX

Fica permitido que o pão de cada dia tenha no homem o sinal de seu suor. Mas que sobretudo tenha sempre o quente sabor da ternura.

Artigo X

Fica permitido a qualquer pessoa,qualquer hora da vida,uso do traje branco.

Artigo XI

Fica decretado, por definição,que o homem é um animal que ama e que por isso é belo,muito mais belo que a estrela da manhã.

Artigo XII

Decreta-se que nada será obrigado nem proibido,tudo será permitido,inclusive brincar com os rinocerontes e caminhar pelas tardes com uma imensa begônia na lapela.

Parágrafo único:Só uma coisa fica proibida:amar sem amor.

Artigo XIII

Fica decretado que o dinheiro não poderá nunca mais comprar o sol das manhãs vindouras. Expulso do grande baú do medo,o dinheiro se transformará em uma espada fraternal para defender o direito de cantar e a festa do dia que chegou.

Artigo Final

Fica proibido o uso da palavra liberdade,a qual será suprimida dos dicionários e do pântano enganoso das bocas.A partir deste instante a liberdade será algo vivo e transparente como um fogo ou um rio,e a sua morada será sempre o coração do homem.


Thiago de Mello (1926)

01 julho 2007

Quem, no seio...

"Les hommaginaires - Antonin Artaud" - B.M.C

"Quem sonha sem deplorar os seus sonhos, sem trazer uma sensação de atroz nostalgia desses mergulhos em fecunda inconsciência, é imundo. O sonho é verdadeiro. Todos os sonhos são verdadeiros. Tenho a sensação de asperezas, paisagens como que esculpidas, pedaços de terras ondulantes cobertos por uma espécie de areia fresca cujo sentido quer dizer:«pesar, decepção, abandono,ruptura, quando é que voltamos a ver-nos?» Nada faz lembrar tanto o amor como o apelo de certas paisagens vistas em sonho, como o que rodeia certas colinas e é uma espécie de argila material cuja forma diríamos moldada pelo pensamento.

Quando é que voltamos a ver-nos?Quando é que o sabor terroso dos teus lábios voltará a roçar a ansiedade do meu espírito? A terra é como um turbilhão de lábios mortais. A vida escava-nos à frente o abismo de todas as carícias que faltaram. Que fazer ao nosso lado do anjo que não soube aparecer? As nossas sensações serão todas intelectuais de vez, e os nossos sonhos não chegaram a incediar-se numa alma cuja emoção nos vai ajudar a morrer? Que morte será esta onde nunca estamos sós, onde o amor não sabe mostrar-nos o caminho?"


Antonin Artaud (1896 -1948) L´art et la mort, Paris, 1929

30 junho 2007

Uma Qualquer Pessoa

Precisava de dar qualquer coisa a uma qualquer pessoa.
Uma qualquer pessoa que a recebesse
num jeito de tão sonâmbulo gosto
como se um grão de luz lhe percorresse
com um dedo tímido o oval do rosto.

Uma qualquer pessoa de quem me aproximasse
e em silêncio dissesse: é para si.
E uma qualquer pessoa, como um luar, nascesse,
e sem sorrir, sorrisse,
e sem tremer, tremesse,
tudo num jeito de tão sonâmbulo gosto
como se um grão de luz lhe percorresse
com um dedo tímido o oval do rosto.

Na minha mão estendida dar-lhe-ia
o gesto de a estender,e uma qualquer pessoa entenderia
sem precisar de entender.

Se eu fosse o cego
que acena com a mão à beira do passeio,
esperaria em sossego,
sem receio.
Se eu fosse a pobre criatura que estende a mão na rua à caridade,
aguardaria, sem amargura,
que por ali passasse a bondade.
Se eu fosse o operário que não ganha o bastante para viver,
lutava pelo aumento do salário
e havia de vencer.

Mas eu não sou o cego,
nem o pobre,
nem o operário a quem não chega a féria.
Eu sou doutra miséria.
A minha fome não é de pão, nem de água a minha sede.
A minha mão estendida e tímida, não pede.
Dá.
Esta é a maior miséria que no mundo há.
E eu que precisava tanto, tanto, de dar qualquer coisa a uma
qualquer pessoa!
E se ela agora viesse?
Se ela aparecesse aqui, agora, de repente,
se brotasse do chão, do tecto, das paredes,
se aparecesse aqui mesmo, olhando-me de frente,
toda lantejoulada de esperanças
como fazem as fadas nos contos das crianças?

Ai, se ela agora viesse!
Se ela agora viesse, bebê-la ia de um trago,
sorvê-la-ia num hausto,
sequiosamente,
tumultuosamente,
numa secura aflita,
numa avidez sedenta,
sofregamente,
como o ar se precipita
quando o espaço vazio se lhe apresenta.

António Gedeão (1906 -1997)

28 junho 2007

Abrigo


"Tengo las manos de ayer, me faltan las de mañana"
Chillida

27 junho 2007

Naked Man, Back View -1991-1992, Lucien Freud (1922)

«My mother said that my first word was "alleine" wich means alone. Leave me alone.»

Lucien Freud

23 junho 2007

Tus Pies

Cuando no puedo mirar tu cara
miro tus pies.

Tus pies de hueso arqueado,
tus pequeños pies duros.

Yo sé que te sostienen,
y que tu dulce peso
sobre ellos se levanta.

Tu cintura y tus pechos,
la duplicada púrpura de tus pezones,
la caja de tus ojos que recién han volado,
tu ancha boca de fruta,
tu cabellera roja,
pequeña torre mía.

Pero no amo tus pies
sino porque anduvieron
sobre la tierra y sobre
el viento y sobre el agua,
hasta que me encontraron.

Pablo Neruda (1904 - 1973)

21 junho 2007

Dans la Solitude des Champs de Coton

Encre et Fusion - Luis Caballero

“Si un chien rencontre un chat – par hasard, ou tout simplement par probabilité, parce qu'il y a tant de chiens et de chats sur un même territoire qu'ils ne peuvent pas, à la fin, ne pas se croiser ; si deux hommes, deux espèces contraires, sans histoire commune, sans langage familier, se trouvent par fatalité face à face – non pas dans la foule ni en pleine lumière, car la foule et la lumière dissimulent les visages et les natures, mais sur un terrain neutre et désert, plat, silencieux, où l'on se voit de loin, où l'on s'entend marcher, un lieu qui interdit l'indifférence, ou le détour, ou la fuite ; lorsqu'ils s'arrêtent l'un en face de l'autre, il n'existe rien d'autre entre eux que de l'hostilité – qui n'est pas un sentiment, mais un acte, un acte d'ennemis, un acte de guerre sans motif.”
Bernard-Marie Koltès

20 junho 2007

La Prière, 1930 - Man Ray (1890 -1976)


"If the desire is strong enough, it will find a way. In other words, inspiration, not information, is the force behind all creative acts."
Man Ray

19 junho 2007

Cavalo Alucinado

Pára-me de repente o pensamento
Como que de repente refreado
Na doida correria em que levado
Ia em busca da paz do esquecimento.

Pára surpreso, escrutador, atento,
Como pára um cavalo alucinado
Ante um abismo súbito rasgado.
Pára e fica, e demora-se um momento.

Pára e fica, na doida correria.
Pára à beira do abismo, se demora.
E mergulha na noite escura e fria.

Um olhar de aço, que essa noite explora.
Mas a espora da dor seu flanco estria,
E ele galga e prossegue sob a espora...

Ângelo de Lima (1872 - 1921)

15 junho 2007

Relativity, 1953 - M.C. Escher (1898 -1972)

"Sometimes it seems as though we are all obsessed with a longing for the impossible. The reality around us, the three-dimensional world surrounding us, is to ordinary, too common. We earn for the unnatural or the supernatural, the impossible, the miraculous..."
M.C. Escher (1963)

13 junho 2007

La Poupée, 1935 - Hans Bellmer (1902-1975)

"L'expression élémentaire, celle qui ne vise pas au départ la communicabilité, est un réflexe. A quel besoin, à quel instinct du corps correspond-elle ?"
Hans Bellmer

08 junho 2007

Álcool

Guilhotinas, pelouros e castelos
Resvalam longemente em procissão;
Volteiam-me crepúsculos amarelos,
Mordidos, doentios de roxidão.

Batem asas de auréola aos meus ouvidos,
Grifam-me sons de cor e de perfumes,
Ferem-me os olhos turbilhões de gumes,
Descem-me a alma, sangram-me os sentidos.

Respiro-me no ar que ao longe vem,
Da luz que me ilumina participo;
Quero reunir-me, e todo me dissipo ---
Luto, estrebucho... Em vão! Silvo pra além...

Corro em volta de mim sem me encontrar...
Tudo oscila e se abate como espuma...
Um disco de oiro surge a voltear...
Fecho os meus olhos com pavor da bruma...

Que droga foi a que me inoculei?
Ópio de inferno em vez de paraíso?...
Que sortilégio a mim próprio lancei?
Como é que em dor genial eu me eternizo?

Nem ópio nem morfina. O que me ardeu,
Foi álcool mais raro e penetrante:
É só de mim que ando delirante...
Manhã tão forte que me anoiteceu.

Mário de Sá-Carneiro (1890 - 1916)